sábado, 27 de junho de 2009

O enriquecimento sem causa no novo Código Civil - Sílvio de Salvo Venosa

Extraído de: Justiça Federal do Estado de Mato Grosso do Sul - 03 de Novembro de 2008



O Código Civil de 2002 reduziu sensivelmente os prazos extintivos, de prescrição e decadência. Assim, o prazo geral de prescrição passou a ser de dez anos, conforme o artigo 205, enquanto no sistema anterior era de 20 anos para as ações pessoais. É de três o prazo exíguo, por exemplo, para a pretensão relativa a aluguéis de prédios e para a de reparação civil, como estabelece o artigo 206, parágrafo 3º do código. Nessa premissa, são muitos os créditos, mormente de pessoas jurídicas, que, por inúmeras razões, deixam de ser cobrados dentro dos prazos assinalados.
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Há, contudo, no próprio estatuto de 2002, um instituto que pode socorrer tais situações, remediando o prejuízo sofrido pelo credor. Trata-se do enriquecimento sem causa, previsto nos artigos 884 a 884 do novo Código Civil. É freqüente que uma parte se enriqueça, isto é, obtenha vantagem patrimonial em detrimento de outra. Aliás, é isso que ocorre nos contratos unilaterais e gratuitos, como a doação. Porém, há situações que esse desequilíbrio ocorre sem fundamento, sem causa jurídica. A função primordial do direito é justamente a de manter o equilíbrio social como fenômeno de adequação social. O enriquecimento sem causa, definido no artigo 884 do código, é uma das fontes das obrigações e mesmo perante a ausência de texto no sistema civil anterior, aplicava-se como uma categoria geral, desde as origens do fenômeno em ações específicas do direito romano. Existe enriquecimento sem causa - enriquecimento injusto, enriquecimento ilícito ou locupletamento indevido - sempre que houver uma vantagem de cunho econômico, sem justa causa, em detrimento de outrem.

A ação de enriquecimento sem causa ("in rem verso") tem por objeto tão-só reequilibrar dois patrimônios, desequilibrados sem fundamento jurídico. Não se confunde com uma ação por perdas e danos ou derivada de um contrato. Deve ser entendido como sem causa o ato ou negócio jurídico desprovido de razão albergada pela ordem jurídica. A causa poderá existir, mas sendo injusta, estará configurado o locupletamento. Em matéria cambial, existe referência expressa no direito positivo à essa ação, no artigo 48 da Lei nº 2.044, de 1908. Por esse dispositivo permite-se uma ação de rito ordinário contra o sacador ou aceitante de um título de crédito que se tenha enriquecido indevidamente. Trata-se de uma ação subsidiária e tem como requisitos a existência prévia de um título de crédito (nota promissória, cheque etc.), a desoneração da responsabilidade cambial por qualquer razão (falta de protesto, de aceite ou prescrição, por exemplo) e que o prejuízo sofrido pelo portador do título corresponda a um efetivo enriquecimento por parte do aceitante ou sacador. Trata-se de uma situação típica de enriquecimento sem causa, a qual, como se vê, abrange também a prescrição do título.

É importante salientar que a ação de enriquecimento sem causa será sempre subsidiária, tanto nessa ação derivada de títulos de créditos, como nos casos de enriquecimento em geral, tal como está no artigo 886 do Código Civil, que estabelece que "não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo". Desse modo, não caberá ação de locupletamento se for possível mover de cobrança baseada em contrato ou indenizatória por responsabilidade civil em geral. Torna-se possível com a prescrição dessas respectivas ações. A "actio in rem verso" não é uma ação de cobrança ou de indenização. A aplicação da teoria do enriquecimento injustificado pertence à teoria geral do direito.

A restituição que se almeja nessa ação deve ficar entre dois parâmetros: de um lado não pode ultrapassar o enriquecimento efetivo recebido pelo agente em detrimento do devedor; de outro, não pode ultrapassar o empobrecimento do outro agente, isto é, o montante em que o patrimônio sofreu diminuição. Não se trata, portanto de efeitos que se assemelhem a uma ação de nulidade ou de resolução de negócio jurídico. Não se cuida de estabelecer uma indenização, mas de uma reparação na medida do enriquecimento, na medida do pagamento, por exemplo, que deveria ter sido efetuado e não o foi.

Desse modo, é possível, em princípio, promover uma ação de enriquecimento sem causa em todas as situações nas quais não é mais possível promover a ação específica, por ter decorrido o prazo prescricional. Como enfatizado, a ação de locupletamento indevido é subsidiária, isto é, a última de que pode se valer o credor perante a inexistência de qualquer outro meio jurídico. Os efeitos da ação de enriquecimento serão sempre menores do que os da ação derivada de um contrato ou da responsabilidade aquiliana. Na primeira, apenas a efetiva perda ou empobrecimento poderá ser concedido; nas outras, pode-se falar em indenização equivalente a prestações não cumpridas, cláusula penal e perdas e danos. Não pode, é evidente, a ação de enriquecimento converter-se em uma panacéia jurídica. Contudo, trata-se de um instrumento importante para a recuperação de créditos que já se julgam perdidos por força de uma prescrição.

Note que, a exemplo da ação de enriquecimento relacionada com os títulos de crédito, o prazo prescricional para a ação de enriquecimento sem causa é de três anos, conforme prevê o artigo 206, parágrafo 3º, inciso IV do novo Código Civil. Esse prazo, seguindo o princípio da "actio nata", começa a fluir a partir do momento em que as outras ações não podem mais ser propostas, como examinamos - a partir, portanto, do escoamento do prazo prescricional da ação derivada do contrato ou de outro ato ou negócio jurídico.

Para colocar em operação uma ação "in rem verso", olvidada pela doutrina e jurisprudência, é fundamental que nossos operadores do direito voltem seus estudos para ela, um instituto tão rico, profícuo, útil e tradicional da teoria geral do direito e que pode recuperar créditos que já se tinham como perdidos.

Sílvio de Salvo Venosa é autor de várias obras de direito civil, consultor e parecerista nesta área

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte: Valor Econômico em 03-11-2008

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